sábado, 10 de junho de 2017

A JUSTIFICAÇÃO NAS CONFISSÕES

Os séculos XVI e XVII foram férteis nas formulações de documentos confessionais. Neste artigo iremos considerar o que esses grandes homens de Deus deixaram registrado nesses documentos históricos em relação à doutrina da justificação pela fé. Fazer isso é muito importante para demonstrar que esse ensino era matéria de grande importância para eles. Os luteranos costumavam dizer que a justificação pela fé é o artigo de fé que decide se a igreja está em pé ou caída.
Vamos começar com a Confissão de Augsburgo (1530) documento confessional luterano. No artigo IV a Confissão de Augsburgo declara o seguinte a respeito da justificação pela fé:
“Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra e satisfação nossos, porém que recebemos remissão do pecado e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua causa os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna. Pois Deus quer considerar e atribuir essa fé como justiça diante de si, conforme diz São Paulo em Romanos 3 e 4”

A Confissão de Augsburgo mostra nossa total incapacidade de nos justificarmos por meio de nossos méritos ou obras. Simplesmente não podemos alcançar o perdão dos pecados e sermos justos diante de Deus por esses caminhos. Mas pela graça nós recebemos a remissão dos pecados e nos tornamos justos diante de Deus.
Mas essa justiça não provém de nós mesmos. Mas é “por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que por sua graça os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna” (Artigo IV).
A Confissão mostra o seu tom polêmico contra o Romanismo que anteriormente obscurecia a fé e agora fala de uma justificação pela fé e pelas obras. Se a fé não era conhecida é porque o oponente havia obscurecido. Mas ela é matéria antiga. Ambrósio já havia dito: “Assim está estabelecido por Deus que aquele que crê em Cristo é salvo, e tem a remissão dos pecados não por obras, mas pela fé somente, sem mérito” (artigo VI). Mas o oponente “aprendeu a falar agora da fé, sobre a qual nada pregaram em tempos anteriores. Agora, contudo, ensinam que não nos tornamos justos diante de Deus unicamente por obras, mas acrescentam a fé em Cristo, e dizem que a fé e as obras nos tornam justos diante de Deus” (artigo XX).
Agora Roma diz que uma pessoa não é justificada pelas obras somente, mas que a justificação é pela fé e pelas obras. Isso parecia um avanço, pois anteriormente ensinava a confiar apenas nas obras, mas a Confissão de Augsburgo rejeita essa nova formulação e afirma que “nossas obras não nos podem reconciliar com Deus e obter graça; isso, ao contrário, sucede apenas pela fé, quando cremos que os pecados nos são perdoados por amor de Cristo, o qual, ele só, é o mediador que pode reconciliar o Pai. Agora, quem pensa realizar isso mediante obras e imagina merecer a graça, esse despreza a Cristo e procura seu próprio caminho a Deus, contrariamente ao evangelho” (artigo XX).
A justificação pela fé somente, embora desprezada entre pessoas não experimentadas, verifica-se que é muito consoladora e salutar para as consciências tímidas e apavoradas. Então mais uma vez a Confissão ressalta a impossibilidade de alcançarmos a paz com Deus por meio de nossas obras, “porque a consciência não pode alcançar descanso e paz mediante obras, porém somente pela fé, quando chega à segura conclusão pessoal de que por amor de Cristo possui um Deus gracioso, conforme também diz Paulo Rm 5: “Justificados mediante a fé, temos descanso e paz com Deus” (artigo XX).
Ao fazer essas profundas afirmações, a Confissão de Augsburgo tem consciência de que não traz ensinamento novo, mas apenas mostrando o que ensina a Escritura de que o homem é justificado pela fé em Cristo.
A Confissão Belga (1561), escrita por Guido de Brés, aponta para a mesma verdade revelada na Palavra de Deus: o homem é justificado pela fé em Cristo.
Artigo 22: “Cremos que, para obtermos verdadeiro conhecimento desse grande mistério, o Espírito Santo acende, em nosso coração, verdadeira fé. Esta fé abraça Jesus Cristo com todos os seus méritos, apropria-se dEle e nada mais busca fora dEle. Pois das duas, uma: ou não se ache em Jesus Cristo tudo o que é necessário para nossa salvação, ou tudo se acha nEle, e, então, aquele que possui Jesus Cristo pela fé, tem a salvação completa. Dizer, porém, que Cristo não é suficiente, mas que, além dEle, algo mais é necessário, significaria uma blasfêmia horrível. Pois Cristo seria apenas um salvador incompleto. Por isso, dizemos, com razão, junto com o apóstolo Paulo, que somos justificados somente pela fé, ou pela fé sem as obras (Rm 3.28). Entretanto, não entendemos isto como se a própria fé nos justificasse, mas ela é somente o instrumento com que abraçamos Cristo, nossa justiça. Mas Jesus Cristo, atribuindo-nos todos os seus méritos e tantas obras santas, que fez por nós e em nosso lugar, é nossa justiça. E a fé é o instrumento que nos mantém com Ele na comunhão de todos os seus benefícios. Estes, uma vez dados a nós, são mais que suficientes para nos absolver dos pecados”.
A Confissão Belga afirma que aquele que possui Jesus Cristo pela fé tem a salvação completa e que é blasfêmia buscar algo fora de Cristo, pois isso significaria que Cristo seria apenas um salvador incompleto.
Mas a alma crente, que teve a verdadeira fé acesa no coração pelo Espírito Santo; abraça a Jesus Cristo com todos os seus méritos, apropria-se dele e nada mais busca fora dele. Observem que a Confissão destaca a nossa total dependência de Cristo para a justificação.
Ao se referir a fé, a Confissão Belga a chama de instrumento. “A fé é o instrumento com que abraçamos Cristo, nossa justiça”, e ainda: “A fé é o instrumento que nos mantém com ele na comunhão de todos os seus benefícios” (artigo 22).
A alma justificada deve se apoiar e repousar na obediência do Cristo crucificado. Essa obediência é nossa se cremos nele. Ela é suficiente para cobrir todas as nossas iniqüidades e assim nos dá ousadia para nos aproximarmos de Deus (Artigo 23).
A Confissão Belga expressa que a justificação está fundamentada na Escritura, ela é somente pela graça, mediante a fé em Cristo, resultando por fim na glória de Deus!
A Segunda Confissão Helvética (1562-1566), elaborada por Heinrich Bullinger, amigo e discípulo de Zuínglio, faz as seguintes afirmações sobre a justificação pela fé.
Somos justificados por causa de Cristo. É absolutamente certo que todos nós somos por natureza pecadores e ímpios, e diante do tribunal de Deus somos acusados de impiedade e réus de morte, mas, só pela graça de Cristo, sem qualquer mérito nosso ou consideração por nós, somos justificados, isto é, absolvidos dos pecados e da morte por Deus, o juiz. Que é, com efeito, mais claro do que o que disse São Paulo? “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rom 3.23 ss).
A justiça imputada. Cristo tomou sobre si mesmo e carregou os pecados do mundo, e satisfez a justiça divina. Portanto, é só por causa dos sofrimentos e ressurreição de Cristo que Deus é propício para com nossos pecados e não no-los imputa, mas imputa-nos como nossa a justiça de Cristo (II Co 5.19 ss; Rom 4.25), de modo que agora não só estamos limpos e purificados de pecados ou somos santos, mas também, sendo-nos dada a justiça de Cristo, e sendo nós assim absolvidos do pecado, da morte ou da condenação, somos finalmente justos e herdeiros da vida eterna. Propriamente falando, portanto, só Deus justifica, e justifica somente por causa de Cristo, não nos imputando os pecados, mas a sua justiça.
Somos justificados somente pela fé. E porque recebemos esta justificação, não por quaisquer obras, mas pela fé na misericórdia de Deus e em Cristo, por isso ensinamos e cremos, com o apóstolo, que o pecador é justificado somente pela fé em Cristo e não pela lei ou por quaisquer obras. O apóstolo diz: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Rom 3.28). Também: “Porque se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça... Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rom 4.2 ss; Gen 15.6). E outra vez: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”, etc. (Ef 2.8 ss). Portanto, porque a fé recebe Cristo, nossa justiça, e atribui tudo à graça de Deus em Cristo, por isso a justificação é atribuída à fé, principalmente por causa de Cristo, e não porque ela seja obra nossa, visto que é dom de Deus (capítulo 15. Da Verdadeira justificação dos fiéis).
O Catecismo de Heidelberg (1563), escrito por dois talentosos teólogos, Gaspar Olevianus e Zacharias Ursinus caminham nesse mesmo viés:
Pergunta 60. Como é que você é justo diante de Deus?
Resposta: Somente pela verdadeira fé em Jesus Cristo. Embora a minha consciência me acuse de haver pecado gravemente contra os mandamentos de Deus, sem jamais haver obedecido a todos eles, e de ainda ser inclinado a todo o mal, Deus, no entanto, sem que houvesse em mim nenhum mérito próprio, somente pela Sua graça, imputa-me a perfeita satisfação, justiça e santidade de Cristo. Se tão-somente aceitar esse dom crendo fielmente com o coração, Ele me concede isso como se eu jamais tivesse tido ou cometido nenhum pecado, e como se eu mesmo tivesse cumprido toda a obediência que Cristo cumpriu por mim.
Pergunta 61. Por quê você diz que é justo somente pela fé?
Resposta: Eu o digo não porque sou agradável a Deus graças ao valor da minha fé, pois somente a satisfação, a justiça e santidade de Cristo é a minha justiça diante de Deus. É somente pela fé que posso receber e fazer dessa justiça a minha própria justiça.
Observem que o Catecismo de Heidelberg diz que é pela verdadeira fé em Jesus Cristo que somos justos diante de Deus. São os méritos de Cristo que Deus aceita. A realidade da justificação se encontra na perfeita justiça, satisfação e santidade de Cristo. E Deus é gracioso em nos imputar a justiça de seu Filho
Segundo o Catecismo, “esse benefício é meu somente se eu aceitar pela fé, de todo o coração” e ainda: “Somente pela fé posso aceitar e possuir a justificação”. Para que não haja mal entendidos, o Catecismo ensina que a justificação acontece, não graças ao valor da fé, “mas porque somente a satisfação por Cristo e a justiça e santidade dele me justificam perante Deus”.
G. C. Berkouwer ressalta que a fé “não é acrescentada como um outro ingrediente independente que dá sua própria contribuição para a justificação em Cristo. Ao contrário, a fé nada faz a não ser aceitar ou descansar na soberania de seu benefício”. [1]
A Confissão de Fé de Westminster e seus catecismos (1647-1648) declaram o seguinte:
Capítulo XI. I: “Os que Deus chama eficazmente também livremente justifica. Essa justificação não consiste em Deus infundir neles a justiça, mas em perdoar os seus pecados e em considerar e aceitar as suas pessoas como justas. Deus não os justifica em razão de qualquer coisa neles operada ou por eles feita, porém somente em consideração da obra de Cristo; não lhes imputando  como justiça a própria fé, o ato de crer ou qualquer outro ato de obediência evangélica, mas lhes imputando a obediência e a satisfação de Cristo, quando eles o recebem e se firmam nele pela fé, que não tem de si mesmos, mas que é dom de Deus”.
XI. II: “Essa fé, assim recebendo e assim se firmando em Cristo e em sua justiça, é o único instrumento[2] de justificação; ela, contudo, não está sozinha na pessoa justificada, mas sempre anda acompanhada de todas as outras graças salvadoras; não é uma fé morta, mas obra pelo amor”.
XI. III: “Cristo, por meio de sua obediência e morte, pagou plenamente a dívida de todos os que são justificados e, em lugar deles, fez a seu Pai uma satisfação própria, real e plena. Contudo, como Cristo foi pelo Pai dado em favor deles, e como a obediência e a satisfação dele foram aceitas foram aceitas em lugar deles, ambas livremente e não por qualquer coisa neles existente, a justificação deles provém unicamente da livre graça, a fim de que tanto a perfeita justiça como a abundante graça de Deus sejam glorificadas na justificação dos pecadores”.
O Catecismo Maior de Westminster também nos ensina sobre a justificação pela fé:
Pergunta 70: O que é justificação?
Resposta: Justificação é um ato da livre graça de Deus para com os pecadores, no qual ele os perdoa, aceita e considera justas as pessoas diante dele, não por qualquer coisa neles operada nem por eles feita, mas unicamente pela perfeita obediência e plena satisfação de Cristo, a eles imputadas por Deus e recebidas só pela fé.
O Breve Catecismo de Westminster é sucinto, porém, bíblico em sua apresentação. Na pergunta 33, o que é justificação? Ele responde da seguinte maneira:
“Justificação é um ato da livre graça de Deus, no qual ele perdoa todos os nossos pecados e nos aceita como justos diante dele, somente por causa da justiça de Cristo a nós imputada, e recebida só pela fé”.
A Confissão Batista de 1689 no capítulo 11 nos ensina:
Aqueles a quem Deus chama eficazmente, Ele também os justifica, gratuitamente; não por infundir-lhes justiça, mas perdoando-lhes os pecados, considerando e aceitando-os como pessoas justas; não por coisa alguma realizada neles ou por eles mesmos feita, mas unicamente por consideração a Cristo; não por imputar-lhes como justiça a fé, o ato de crer, ou qualquer outra obediência evangélica, mas por imputar-lhes a obediência ativa de Cristo (a toda a lei) e sua obediência passiva (na morte), como total e única justiça deles, que recebem a Cristo e nEle descansam, pela fé. E, esta fé, não a têm de si mesmos, é dom de Deus (11.1).
A nota que soou em nossos ouvidos nestes documentos históricos é que essa alegre realidade se encontra somente em Cristo. Por nós mesmos somos incapazes de nos aproximarmos de Deus. Nós somos maus e não possuímos justiça própria. Mas Deus por meio de um ato de sua livre graça perdoa todos os nossos pecados, nos imputando justiça. E como ele faz isso? Somente em consideração a perfeita obediência, justiça, santidade e satisfação de Cristo. É em consideração a justiça de Cristo a nós imputada e recebida somente pela fé que somos declarados justos diante do tribunal de Deus. Podemos então juntar nossas vozes a do santo apóstolo: “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5.1).
Em Cristo, a alma crente se apóia e descansa. Ele é nosso e nós somos dele. Seus méritos são nossos, sua justiça pertence aos seus eleitos, “SENHOR justiça nossa” (Jr 23.6). Por causa do meu Amado, e somente por Ele, sou declarado justo diante do tribunal de Deus. 


Pb. Rikison Moura.
  



[1] A Justificação pela Fé nas Confissões Reformadas, in Grandes Temas da Tradição Reformada.
[2] Note que essa é a mesma expressão utilizada pela Confissão Belga. O Catecismo Maior de Westminster também utiliza essa expressão: “Porque a fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e aplica a si Cristo e a sua justiça” (Resposta a Pergunta 73).   

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